Não sei outro nome que designe as cervejarias características de Berlim que não o da cerveja 'Schultheiss'. Existem em toda a cidade e à porta têm sempre o mesmo símbolo (o desta tal cerveja).
São sempre lugares mais frequentados por homens, mas não é estranho ver mulheres, nem como clientes, nem como funcionárias. O que é estranho, ao que parece, é ver nelas nova clientela.
Qualquer um que aqui entre conhece toda a gente, mesmo que a casa esteja cheia. Todos se cumprimentam em voz alta, em altos gritos em jeito alemão de falar contente, ou simplesmente com um à-vontade próprio de como quem entra em casa sem precisar de dar grandes satisfações. Há sempre máquinas de jogos e ‘jogatanas’ particulares. Há muito álcool (às vezes só álcool) e em quase todos os “fumadores são bem-vindos”. São casas de vícios sem preconceitos ou limitações que abalem a disposição.
É tão anormal ver nova clientela que assim que entrei na cervejaria onde estou agora, senti logo o ar surpreendido das poucas pessoas que nela encontrei. Tentei pedir a ementa e acabei por pedir só uma cerveja pequena. Foram todos muito amáveis, entretidos a tentar compreender alguém que arranha um alemão e um inglês ao mesmo tempo.
Sentei-me numa mesa, rodeada de mapas, cadernos e jornais. Assim que acabei a minha cerveja, o senhor, que jogava ao balcão com a barmade e outra mulher, olhou para mim muito naturalmente e, em alemão, pediu mais uma cerveja para mim. Muito atrapalhada, com a situação e com a língua estranha que estava a falar, adverti que precisava de me ir embora em pouco tempo. Despreocupadamente o senhor respondeu que não havia problema, afinal uma cerveja pequena bebe-se em dois minutos!
A barmade veio até à minha mesa com a cerveja e assegurou-me de que era uma atitude normal, a do senhor, eu não era dali e estava ali sozinha a precisar de um gesto simpático.
Observo agora este grupo que joga ao balcão. São pessoas tranquilas, de uma simpatia altruísta de quem não deve nada à vida, de quem também não espera nada.
Houve um barulho estranho, mesmo agora, vindo da rua. A barmade ajeitou o casaco e foi certificar-se de que estava tudo bem. Este é o seu espaço e a vida, os seus momentos. O que interessa é cada minuto, cada lançamento de dados, cada bebida que serve, cada cigarro que acende.
Apesar de tudo isto, não há passividade, apenas vivência. É bonito de se ver este bem-estar com a vida, o “Hallo” que se recebe com um sorriso – embora seja diferente do sorriso latino, do português.
Qualquer pessoa se sentiria bem aqui. Eu acredito nisso. Pelo menos se souber, como eu, que irá passar aqui os próximos seis meses da sua vida.
Há um termo em alemão, bastante curioso, que acredito ser capaz de caracterizar o sentimento que trago comigo nesta cidade, nestes lugares: Heimlich. Este termo pode ser simultaneamente traduzido como: secreto, clandestino, estranho, íntimo, familiar.
É uma estranha casa esta que tenho agora. Um lugar que me acolhe doce e pacificamente, um berço tranquilo onde me posso sentir protegida num ambiente desconhecido. Rodeada de palavras carinhosas que não compreendo, por estados de espírito que não são meus, mas ainda assim partilho deles.
Obrigada Lisboa, obrigada família e a todos os que me são familiares e a minha casa, por saber o que é o meu lugar, aquele ao qual se volta sempre. Obrigada Berlim, obrigada aos berliner, por saber o que é estar estranhamente noutra casa, noutra minha casa, da qual se acaba sempre por desaparecer.